terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

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Dormi mais uma vez, com a certeza de que o fim seria aquela escuridão, e até me confortei de alguma forma, pois já não escutava nada além dos meus pensamentos. No entanto, nem tudo é como queremos. Acordei diante do mesmo cenário desesperador para mim, onde ao lado do meu caixão, no plano físico, as pessoas desmaiavam, choravam e aplaudiam. O hino de Oxalá era entoado a cada instante e meu desespero voltou a aflorar, só que desta vez eu me revoltava contra os Guias e Orixás, porque eles deixaram que eu morresse. “Oxalá, cadê você que nada fez? Seu maldito!” Pobre de mim, era um infeliz, querendo ser imortal no corpo físico. Maria se aproximou de mim e eu a questionei aos berros e com insultos: – Maria, por que mandaram você e não o próprio Oxalá? Ele está com medo de mim? Ela, calma, me disse: – Manoel, tudo no seu momento, não se revolte com coisas tão pequenas e já sem importância para você nesse instante. Seus laços com o corpo já foram cortados, iremos retirá-lo daqui e levá-lo a um lugar mais calmo. Nesse momento, senti meu corpo frio e, a cada segundo que passava, mais gelado ele ficava. – Não, eu não sairei daqui. Já que não significo nada para Oxalá, a quem dediquei minha vida, eu posso muito bem ficar com o meu povo, com meus filhos e netos, com aqueles que realmente me amam. Ela respondeu: – Manoel, filho de Deus pai, não seja orgulhoso. Nada nesse mundo é nosso e é hora de seguir, saiba que nada poderemos fazer por você se sua escolha for a de ficar. – Eu ficarei e nada nem ninguém vai me impedir de fazer tudo que eu ainda tenho para fazer nessa terra. Maria mais uma vez tentou me persuadir: – Manoel, seu tempo de encarnado acabou. Você terá muito que fazer do lado de cá da vida. – Já disse que ficarei com minha família e nem que o próprio Oxalá venha aqui eu irei deixá-los. – Manoel, aqui você não ficará e muito me dói vê-lo escolher o caminho mais difícil. Saiba que, de qualquer modo, estaremos ao seu lado e que a ajuda virá quando se fizer necessária, porque o Pai celeste não abandona nenhum filho. Nesse momento, começou um grande tumulto dos dois lados: choro e gritos que doíam no meu corpo do lado material; gargalhadas e ofensas do lado espiritual. Ouvi o som de mãos que batiam em minha urna funerária, enquanto diziam: – Ele será nosso, o chefe ficará muito contente. Velho feiticeiro, sua hora chegou! Eu estava desesperado, pois os gritos eram cada vez mais apavorantes e, pela última vez naquela década, eu ouvia o hino de Oxalá. Maria tentou um último contato, mas eu não lhe dei importância, embora meu corpo balançasse e eu gritasse e pedisse por ajuda mais uma vez. Quando percebi o que estava acontecendo, meu pânico foi total. Minha urna funerária descia à sepultura e eu sentia cada pá de terra bater em meu caixão, então, gritei, chorei copiosamente até que a exaustão tomou conta de mim. Lembro-me de tudo o que vi como se fora um sonho ou meros pensamentos de um velho morto, pois vi naquela hora meu tempo de criança, quando minha mãe dividia com alegria o pouco que tinha entre os filhos, depois, meu tempo de moço jovem e as primeiras manifestações da mediunidade em minha vida. Foi quando chamei por Maria, minha esposa tão dedicada e que sempre esteve ao meu lado, só que dessa vez ela não me respondeu. O nascimento dos meus filhos, de meus netos, tudo isso passou pela minha cabeça e eu ainda me perguntava: Por que fizeram isso comigo? Por que me deixaram aqui? Foi quando ouvi gargalhadas assustadoras que me enregelaram a alma e vi uma mão esquelética aparecer dentro do meu túmulo e do lado de fora uma voz apavorante me disse: – Feiticeiro, vim cobrar o que é meu por direito. A mão agarrou as roupas de chefe de terreiro, às quais eu tanto era apegado, e me puxou para fora. Era noite, não saberia dizer quanto tempo fiquei ali, exposto à chuva forte que caia e a vários espíritos que se reuniam em círculo, alguns deles com várias partes do corpo faltando, todos rindo de mim. Ao centro, sentado em meu túmulo, encontrava-se um ser alto, com capuz preto, e que olhava para o chão. Era alguém frio e sua aura negra. Eu tossia e chorava, meu corpo estava completamente dolorido, meu estômago doía sem parar e, ao inspirar, o ar queimava-me por dentro. Ele foi o primeiro a falar: – Pensei que esse encontro nunca aconteceria, amigo... – Não sou seu amigo, quem é você? Ele mais uma vez riu e os outros fizeram coro ao som horrendo. – Quem sou eu, me chame como quiser velho, você mesmo já me deu vários nomes: Tranca rua, Caveira, Veludo. Eu fui muitas coisas para você, velho, principalmente quando era para eu fazer favores em troca de migalhas, dos quais você e esta corja de infelizes que te procuravam para fazer o mau a outros precisavam... – Eu só era condutor, nunca fiz mal a ninguém. Ele respondeu: –Desse jeito eu vou sentir pena de você velho... – Por favor, eu só quero ir para casa... Mais uma vez ele riu: Casa? Que casa? Você agora é meu, irá me pagar por tudo que fiz para você. É chegada a hora do acerto de contas, seu velho maldito. Então, ele ordenou aos seus: – Acorrente-o, como ele fazia conosco. Eu não tinha força para fugir, tentei levantar, mas minhas pernas estavam fracas. Fui acorrentado e uma vez mais a escuridão foi total.

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