terça-feira, 21 de maio de 2013

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O dia nasceu com os pássaros cantando, juntamente com eles eu ouvia várias vozes entoando lindas cantigas que nos chamavam à reflexão, para a vida espiritual. Saí do meu quarto/oca para também participar da cantoria. Os pacientes estavam todos sentados no gramado, acompanhados dos enfermeiros e junto a eles encontrava-se um senhor de pele negra e barba branca, tendo os cabelos dessa mesma cor. Esse seria o meu primeiro contato com um preto velho. Maria estava de pé e sorriu para mim, indicando um lugar para eu sentar, enquanto o senhor continuava a cantar: Lá no cruzeiro das almas aonde as almas vão rezar, as almas choram de alegria quando seus filhos combinam, também choram de tristeza quando não querem combinar. A música me emocionava, principalmente porque fazia eu me lembrar de minha família, e a saudade era inevitável. Há muito eu estava sem notícias daqueles que amava, de como andariam meus filhos, netos e os filhos do meu terreiro, muitos deles grandes amigos. Quando a música acabou, o senhor falou: – Filhos, a saudade dos que os filhos deixaram no plano da matéria é natural, mas que os filhos lembrem que saudade e tristeza são coisas diferentes e as duas não combinam. Filhos, quando vóis misses sentires aquela saudade gostosa, filhos, orem pelos seus, pois com certeza eles estarão orando por vóis também. E, assim, todos nós fechamos nossos olhos e o senhor dos cânticos simples se encheu ainda mais de luz e orou. – Pai de misericórdia, sou apenas um preto velho cheio de erros e maledicências, mais peço, Pai, vóis que ÉS muito maior que o mais elevado espíritos, leve àqueles que amamos o conforto, a paz e principalmente, Pai, a certeza de que um dia, se da sua vontade for, estaremos juntos nessa estrada chamada eternidade. Jatos de luz saiam dos nossos peitos ao encontro do horizonte e eu tive a certeza de que nossas preces haviam sido ouvidas. Ele cantou mais uma canção, que falava da sua época na senzala, e, depois, todos foram em busca de seus afazeres. Maria veio em minha direção e nos abraçamos calorosamente. Como era bom estar novamente com minha Maria! Ela segurou em minha mão e disse: – Vamos Manoel, temos muito que fazer hoje. Eu apenas concordei com ela e fomos em direção àquele senhor que ainda cantava. Ele nos abriu um lindo sorriso, cumprimentou a Maria com um abraço e depois se dirigiu a mim: – Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, Ortêncio, é um prazer imenso te conhecer pessoalmente amigo. Eu o abracei e Maria me disse: – Manoel, este é nosso irmão João Guiné, respeitável preto velho com muito conhecimento nas energias e na manipulação de fluidos vegetais. Ele sorriu e falou: – Maria exagera Ortêncio, eu sou apenas um trabalhadô dessa cidade como logo você será. Eu estava curioso em saber como era o que ele realmente fazia e lhe perguntei: – Fluido vegetal, o que é isso? Ele me respondeu: – Quando encarnado, ganhei conhecimento ajudando o meu povo, curando com ervas, chá e banhos. Logo que desencarnei, me especializei em ajudar espíritos encarnados e desencarnados com o fluido que as plantas pode nos oferecer. Como lá na vida física, aqui na vida espirituais também temos laboratórios para descobertas de cura para doenças do espíritos e o fluido doados pela natureza são a base de muitas curas Ortêncio. Eu estava impressionado: ele era um cientista do além e mais uma vez meu preconceito falara mais alto. Não foi preciso que eu falasse nada, pois João sorriu e me disse: – Sim, amigo Ortêncio, eu sou um preto velho cientista –  riu gostosamente. E continuou: Eu escolhi esta aparência assim, pois estou atuando em um país em que suas origens descendem dos negros e escravo. Como iria conversá com irmão nossos que ainda estão ligados a vidas passadas e vivem em colônias nas matas e nos quilombos tendo eu outra forma? Não conseguiria ajudá para minhas pesquisas Ortêncio. Sei que já te foi falado isso, mas não se engane com as aparências, pois na vida espiritual o que menos importa é a sua forma e seu nome, pois nossas obras são o mais importante. O irmão me abraçou e eu chorei envergonhado. Depois, ele olhou para Maria e lhe disse: –  Vamos, Eric nos espera no refúgio dos anjos. Começamos a caminhar e eu perguntei: – Refúgio dos anjos, o que é isso ? Maria sorriu e me disse: –  Melhor que eu explicar será você próprio ver, pois nada do que eu disser será igual a este lindo lugar. Andamos na direção do bairro de Iemanjá, passamos pelo portão já conhecido e também pela casa de Maria. Andamos por uns dez minutos, até que avistamos um portão colorido, contendo o desenho de um arco-íris e tendo a figura de um anjo sentado sobre o arco-íris. Ao lado do portão havia uma linda placa de prata com letras em dourado que me chamou a atenção e eu disse: – Maria, eu não sei ler, mas gostaria de saber o que está escrito nesta placa. – Manoel, sua capacidade de ler logo voltará. Esta é uma das razões para estarmos aqui, não se envergonhe. Ela, então, leu para mim o que estava escrito na placa, que dizia: Deixai virem a mim as crianças, pois em verdade vos digo que só conhecerão o reino dos céus aqueles que se assemelharem a elas. Ao entrar, quase morri novamente, pois crianças corriam para todos os lados, meninos e meninas de todos os tipos e idades. Um lindo e imenso jardim, com muitos brinquedos, e um belíssimo lago, com barcos nos formatos de patos e peixes, e uma escola imensa e colorida faziam parte daquela paisagem. Eu caminhava impressionado com o que via, enquanto uma alegria incontida contagiava meu ser. Notei também que monitores organizavam e cuidavam das crianças. Ao chegarmos à porta da escola, Eric nos esperava e me disse: – Bem-vindo Ortêncio Manoel, mensageiro de Aruanda, à sua escola...

terça-feira, 14 de maio de 2013

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Eu não conseguia responder, pois meu medo não deixava. Então, a caveira riu e disse: – Como podem ver, Ortêncio é um exemplo de como a sociedade nos vê, mesmo um homem que trabalhou toda a sua vida conhecendo nossa energia, ele nos teme devido sua ignorância. Eu continuava quieto e cada vez mais envergonhado, até que um dos seres com batina falou. – Não podemos culpar Ortêncio, ou qualquer um que seja, por sentir medo do desconhecido ou do mal conhecido. E a caveira, mirando-me respondeu : – O irmão Jeremias tem razão, mas falo a você, amigo Ortêncio, que não há necessidade do medo ou de qualquer outro sentimento que não seja bom. Sei que a forma perispiritual de muitos aqui te assustou, mas, pergunto ao amigo, não é assim que vocês nos idealizaram? Somos os coletores de lixo do além. Não somos o lixo, rebaixamos nossas energias até estarmos próximos àquelas dos seres encarnados, e, desse modo, termos uma comunicação mais fácil com os que ainda estão na carne, bem como com aqueles que já não estão mais nela, mas ainda estão afundados nos sentimentos mais grotescos que se possa imaginar. Porém, não somos apenas o que seus olhos veem, amigo. Ao falar isso, ele foi envolto por uma luz branca e sua forma foi se modificando. Foi se transformando em um homem de pele branca, com olhos azuis. Suas vestes foram se transformando em uma linda armadura dourada e, quando toda a luz se dissipou, eu tinha na minha frente um lindo ser de aparência angelical. Viu, amigo, como somos muito mais? Não importa a forma com a qual me apresente, eu sempre serei o espírito Felipe que, a cada dia, apenas tento fazer meu trabalho junto às Leis de Deus e do universo e em nome do nosso senhor Jesus Cristo. Senti que eu já conseguiria falar, pois estava mais calmo. Assim, fiquei de pé, dei dois passos e me ajoelhei diante da assembleia de guardiões e disse: – Senhores e senhoras, guardiões de Aruanda, pelo que vejo das leis maiores, eu, este espírito ainda ignorante e cheio de preconceitos, peço perdão por blasfemar contra vocês e usar vossos nomes de maneira irônica e me coloco à disposição de todos aqui para aprender a ajudar, no que for preciso e da maneira que for necessária, para, assim, reparar meu erro. Um coro se fez: – Laroyê, Ortêncio de Aruanda! Uma linda mulher de cabelos negros e pele cor de jambo me disse: – Levante- se, amigo, pois nós não temos do quê te perdoar, pois, assim como você, temos muito o que aprender. Agradecemos por você estar aqui hoje. Assim como cada um que aqui está, como cada ser que foi criado pela mão do Altíssimo, você é nosso irmão, como todos os outros. Então, me levantei e percebi que todos estavam de joelhos, como eu estivera. Quando se acomodaram novamente, Felipe pediu que eu relatasse tudo o que conseguisse me lembrar da minha viagem até ali. Meu relato durou horas.  Alguns o registravam por escrito, outros fizeram perguntas, iniciavam debates sobre alguns aspectos do que era relatado, até que, finalmente, dei minha narrativa por terminada, estando exausto. Foi a vez de Gabriel me falar: – Ortêncio,  montaremos uma estratégia com o que você nos passou e, proximamente, uma caravana sairá em expedição à costa terrestre para colher mais informações. Nesse meio tempo, espero que você esteja preparado e recuperado, pois precisaremos da sua ajuda. Você ficará incumbido de relatar aos que estão na carne a respeito dos bastidores de Aruanda. No mais, seja bem-vindo à nossa cidade. Com uma linda oração, ele encerrou a reunião. Eu saí daquela sala com muitas interrogações, não tinha entendido como eu iria passar aos encarnados o que ali acontecia e muito menos tinha vontade de fazê-lo e, por isso, disse ao Henrique: – Eles são seres intrigantes, mas também são loucos! Eu não posso ajudar, como farei isso? – Calma Ortêncio, todas as respostas virão no tempo certo. Amanhã cedo, depois da visita de Maria, você conhecerá a legião de Omolu e muitas das suas perguntas serão respondidas pelo irmão Eric. Agora, amigo, vamos. Você precisa descansar...

domingo, 5 de maio de 2013

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Eu dormi por algumas horas até que a voz de Henrique me tirou do meu sono. Isaura estava com ele e me aplicou uma série de passes, pois apesar de me sentir bem, eu ainda era paciente daquele hospital que me abrigara. Ainda para me refazer do cansaço, tomei o costumeiro caldo que, mais uma vez, estava delicioso. Henrique sorriu e com um ar sério me perguntou se eu estava pronto. Um frio subiu pela minha barriga e ele, como sempre, sorriu: – Fique calmo Ortêncio, os guardiões só querem informações sobre o período em que você ficou aprisionado.  – Como irei ficar calmo, se vou me encontrar com o senhor Tranca Rua em pessoa? Ai, meu Deus!  – Não apenas com ele, mas com alguns outros que você conhece muito bem, meu amigo – disse Henrique em tom de brincadeira.  – Vocês aqui costumam achar tudo normal, já não basta eu estar morto, ainda vou me encontrar pessoalmente com Exus!  – retruquei apreensivo. Mas, desta vez foi Isaura quem me alertou: – Ortêncio, os guardiões ou Exus são espíritos do bem, são a própria Lei do Pai em movimento. Não permita que seu preconceito deixe você perder a oportunidade de aprender com nossos guardiões. E muito me espanta você, senhor Ortêncio, estar com esse medo todo! Não foi o senhor o defensor dos que agora lhe causam medo?  – Agora, além do medo, estou também envergonhado – eu disse. Rimos todos e Henrique concluiu: – Vamos Ortêncio, pois temos hora marcada para a reunião. Quando saí da oca mais uma vez me impressionei, pois já era noite em Aruanda e sobre a luz do luar a cidade era ainda mais bela. Tochas se espalhavam pela cidade. Mais uma vez caminhamos e o conjunto de luzes coloridas era fantástico. Isso sem falar naquela majestosa lua, que reinava em um céu tão iluminado por estrelas que minhas lágrimas não demoraram a cair. Saímos desta vez na direção do grande lago, demos a volta pelo já conhecido lado leste. Do centro do lago, saiam luzes que iluminavam as grandes estátuas dos Orixás. Cada luz tinha uma cor diferente e conforme iluminava os orixás, também modificavam no entorno as cores dos prédios. Esses, que antes eram brancos, agora, eram ou azul ou verde ou vermelho. Paramos em frente ao prédio vermelho e uma enorme porta de vidro se abriu diante de nós. Entramos e, para o meu espanto, tudo ali era de uma beleza infinita. Estávamos em um saguão completamente coberto por um mármore branco. No chão, a figura de uma enorme estrela de Davi. No centro da estrela, dois tridentes cruzados, encimando o tridente uma cruz. Era o símbolo daquele local de luz. Fomos até um balcão e uma linda moça trajava um uniforme vermelho que trazia estampado do lado esquerdo do peito o mesmo símbolo que víamos no chão. Ela nos atendeu cumprimentando: – Laroyê, comandante Henrique. Ele respondeu-lhe o comprimento cerrando o punho e levando-o até o peito esquerdo e lhe dizendo: – Rosa, venho falar com os generais. Eles nos aguardam.  – Pois não, Comandante. Eu os acompanharei até eles. Fomos andando atrás da mulher e entramos em um elevador. Eu notara que ela me olhava de uma forma misteriosa, até que, por fim, ela se pronunciou: – Laroyê, chefe de terreiro. Henrique só observava, enquanto eu respondi: – Olá moça, como vai?  – Eu vou bem Ortêncio. Vejo que ainda chama de moça às pombagiras. Não o culpo por sua falta de conhecimento, amigo. Mas aqui, temos nomes e o meu é Rosa.  – Me desculpe, disse eu. – Estive com você, Ortêncio, algumas vezes, enquanto estava na carne, e me orgulho de te reencontrar nesta cidade. Pois sei o que ela significa pra você e você pra ela. Então, seja bem-vindo meu amigo. Ela falava com muita seriedade e sua expressão era indecifrável, mas senti um calor percorrer meu corpo e me senti protegido por Rosa. O elevador parou, saímos e caminhamos por um extenso corredor. Paramos em frente a uma porta de mogno escura, com o símbolo da estrela cravada nela, assim como se encontrava em todas as outras pelas quais já havíamos passado. Ela bateu na porta e disse: – Senhores, o Comandante Henrique, da 4ª legião de Ogum, acompanhado por Ortêncio, o recém-chegado. Eles estão aqui. Ouvi um ranger de cadeiras e, então, Rosa nos disse que podíamos entrar. A sala era redonda, encontrava-se à meia luz e nela se espalhavam centenas de cadeiras em círculos, como se fosse a arquibancada de um estádio. Todas elas estavam ocupadas por seres de todos os tipos que eu podia imaginar: homens trajando paletós negros, outros que usavam chapéus e paletós brancos, mulheres com lindos vestidos, seres encobertos por enormes capuzes, padres de batinas, homens e mulheres portando armaduras medievais e, outros mais simples, que se trajavam de branco ou outras cores casuais. Todos estavam de pé. No centro daquela pequena arena, estavam duas cadeiras onde Rosa nos acomodou, a mim e ao Henrique. Esse último foi o primeiro a falar: – Laroyê, senhores Generais! Trago da legião de Ogum nosso respeito. Um enorme coro de agradecimento foi ouvido e todos se sentaram. Menos um homem alto que trajava calças e camisa brancas. Sua feição era austera, com traços fortes e olhos escuros. Ele usava um cavanhaque que o deixava ainda mais sério. – Sejam bem-vindos, amigos. Nós também mandamos nossos respeitos à 4ª legião de Ogum, Henrique. Mas não estamos aqui para rasgação de seda, não é mesmo? Pois o trabalho nos espera e nossos irmãos da escuridão avançam a passos largos, cabendo a nós, mensageiros de Cristo, tentar levar a luz à escuridão, da mesma forma que um dia fizeram o mesmo por nós. Nesse momento, meu medo ficou evidente a todos, pois se levantara um ser encapuzado, deixando à mostra seu rosto e mãos. E eu vi diante de mim uma caveira. Sua voz era assustadora e faltou pouco para que eu me levantasse e saísse dali correndo. Ele disse, olhando para mim: – Concordo com o irmão Gabriel, temos que nos apressar, pois a humanidade também caminha a passos largos e de mão dadas com a ignorância, não é mesmo Ortêncio?