segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Página 70

Paramos diante de uma grande porta negra de aço, nela estavam esculpidas centenas de caveiras, aliás, mais parecia que o aço fora derramado sobre aquelas formas. Ao nos aproximarmos, a porta se abriu nos dando a certeza que estávamos sendo aguardados. Era um imenso salão onde centenas de espíritos berravam, portanto, o som que vinha lá de dentro era ensurdecedor. O local era iluminado por tochas o que o tornava mais sombrio, se isso fosse possível. Felipe deu o primeiro passo, os seres abriram um corredor e ao fundo pôde se ver que em cima de um minipalco estava sentado, em um trono também formado por caveiras, um ser horripilante. Estávamos a quase quinze metros de distância, mas sua energia tão densa fazia com que meu corpo doesse, a impressão que eu tinha era que meu perispírito começara a se dissolver. Nenhum dos mensageiros falaram nada ou demostraram qualquer reação mesmo que por telepatia, ainda que a caminhada até as proximidades do trono tenha sido feita debaixo apenas dos insultos e cusparadas disparadas por todos os seres ali presentes. A cada passo que dava, minha surpresa era maior. Então, paramos diante de um ser alto com quase dois metros, vestindo trajes de um general militar, repleto de símbolos de ditadores terrenos exibidos em suas medalhas, além de outros, desconhecidos pelos encarnados. Seu rosto era composto metade dele pelas feições de um encarnado, a outra metade exibia sua caveira, os dedos da mão pareciam se desmanchar e seu cheiro era completamente putrefato. Com suas vestes, o Exu Caveira mais parecia ser um boneco fofinho de pelúcia diante daquela imagem. O homem ergueu a mão e o silêncio se fez. Henrique, então, lhe disse: - Que a luz do Nazareno se faça presente entre os que necessite. Somos a equipe de Mensageiros de Aruanda e estamos aqui em paz. O homem não esposou reação e permaneceu calado por quase um minuto. Quando se propôs a falar, para minha surpresa, sua voz era doce e calma. Porém, com um veneno tão intenso que alguns dos seus seguidores começaram a se contorcer no chão como se as palavras daquele ser lhes torturassem os ouvidos e a alma. - Prezados Mensageiros de Aruanda o que vêm fazer tão longe de casa, eu não sei, porém sei que nem hoje e nunca daqui vocês sairão. Não costumo ser piedoso com tal ousadia de seres que se acham donos da verdade e, principalmente, que invadam nosso território. Foi o Preto Velho João quem respondeu: - Fio, não invadimos seu território, ou seja lá de quem possa ser. Aqui entramos com permissão e também sei que vós já sabia de nossa chegada, não é mesmo? O ser se mostrou surpreendido com as palavras de João. - Eu? Eu de nada sabia velho maldito, não sei do que você está falando. Uma pequena agitação se formara e eu começara a entender o que ali acontecia: o general Inocêncio não tinha pleno controle de sua cidade, pois, como controlar tanta maldade, tantos seres com seus próprios ideais e com ânsia de alçarem até mesmo o seu lugar? - Sim, o fio sabia que nossa caravana chegaria, foi lhe enviado um mensageiro antes de nós. Agora, fio, chegou a hora de todas as verdades serem ditas, não precisamos de mentiras. O pânico se instalara no olhar do general, com a revelação de João, revelação esta que eu mesmo desconhecia. - Velho maldito! Está tentando me jogar contra meu exército. O que você veio trazer nesta cidade? - falou o ser aos gritos, porém, sem ter tempo de ouvir a resposta do Preto Velho. Sem que soubéssemos de onde vinha, uma imensa explosão de energia invadira o local. Então, cavaleiros negros entraram montados em animais indistinguíveis. Henrique correra para o lado do general, que, em desespero, gritara pedindo piedade. O pânico se instalara entre muitos dos presentes, que começavam a ser destruídos pelas espadas dos cavaleiros que nos cercavam, até que, montado em uma espécie de búfalo negro, entrou no salão um ser negro, vestido como padre jesuíta, e usando um capuz que não permitia que se visse o seu rosto. Quando ele parou diante de nós, eu cheguei a vomitar e quase não consigo me manter em pé, sendo apoiado por Felipe que não me deixou cair e me incentivou a ter coragem e me equilibrar. Então, pude ver o homem descer de seu animal, os seres do mal foram reduzidos, sobrando apenas menos da metade. Nós, ainda em desvantagem, estávamos cercados. Ele nos mirou e nos disse: Vermes, simplesmente vermes, é isso o que vocês são e se dependesse apenas de mim eu acabaria com esse circo agora mesmo. Mas, tenho ordem de levar apenas dois de vocês comigo, é isso que farei aqui hoje. - Quem é você? Não falamos com desconhecidos. - disse João de maneira firme. - Poupe-me dos seus joguinhos velho João Guiné, pois você me conhece muito bem e não perderei meu tempo mais uma vez com traidores como você. Porém, se você insiste que seus pupilos saibam quem sou eu, eu sou o som das encruzilhas, sou a lei do submundo, aquele que leva as almas para o inferno e que faz o que seu Jesus não tem coragem. Sou a lei e me chamo Malaquias, e venho em nome dos senhores da escuridão buscar por direito o que é nosso. - Aqui não há nada para você, meu fio, e você sabe que aqui avinhemos justamente para te ver. - Lógico que sei, velho inútil, o você acha que sou? Idiota igual esse aí? Acha realmente que eu acreditaria que veio avisar a Inocêncio que seu tempo acabara e que Jesus tem uma nova proposta para os seres que aqui vivem? Isso tudo foi um plano para chegar até mim. Só que não deixarei vocês destruírem meus planos e minha cidade, e vamos parar de conversa, apenas quero o que é meu. - E o que é seu fio? - Ortêncio e Inocêncio são de responsabilidade nossa. Serão julgados e penalizados como manda a lei dos Dragões. Meu corpo que já não estava lá grande coisa congelara ainda mais! O que eu devia a este ser? Felipe tirara sua espada da cintura e a erguera dizendo: - Nada aqui é seu, Malaquias, nada, entendeu? - Tem certeza que vai querer começar uma guerra por esses dois, Guardião, logo por esse que outrora tanto mal lhe fez e até aos que vocês dizem amar? Com forças, que não sei de onde vieram, eu perguntei: - Do que ele fala, Felipe, o que acontece aqui? - Ortêncio, meu fio, isso não é importante. Agora, cada coisa ao seu tempo, fio. – respondeu-me João Guiné. O ser rira e disse: - Quer dizer que o mago não sabe do que eu estou falando, quer dizer que ele ainda não recuperou sua memória? Vou refrescá-la para você, mago Ortêncio. Você era um de nós, há centenas de anos, você era a mão de ferro do submundo, até passar para o lado do inimigo. Esses que te apoiam hoje, sofreram com sua maldade e não se faça de inocente, pois sei que está tudo aí, dentro de você, seu arrogante, maldito! Você não se lembra que quase fomos destruídos por sua traição? Demoramos séculos para nós reerguermos. Mas estamos aqui, agora, e você pagará por tudo. Eu não podia acreditar! Eu era pior do que imaginara, mas por que não me lembrava? - Venho evoluindo, Malaquias, experimentei encarnações purificadoras e trabalho em nome do Cristo para consertar meus erros, desde quando a escuridão se fazia morada em meu ser. E viemos aqui justamente para mostrar isso a você: há um outro caminho a ser trilhado. Antes que o seu tempo acabe, Jesus tem sim uma nova proposta, não só a você, mas a todos aqueles que quiserem aceitá-la. Porém, esta é sua última chance, pois daqui deste planeta seres como você logo serão retirados e experimentarão uma vida mais árdua em outros orbes. Por isso, filho de Deus, como mensageiros do Cristo aqui presentes, pedimos que olhe para este seu antigo chefe e veja o que Jesus pode também fazer por ti. Eu nem sabia do que estava falando, mas as palavras saíram do meu coração, como se eu tivesse em um transe mediúnico. - Você nem se lembra de quem era. Como isso pode ser bom? - perguntou o ser. - Passei por muita coisa, Malaquias, das quais não me orgulho. Confio em Deus e em Jesus, plenamente, e se o povo de Aruanda acha que ainda não estou preparado para tal lembrança, que assim seja, pois sei que mais cedo ou mais tarde tudo será esclarecido. Eu continuarei trabalhando para um dia suportar saber o que fiz, sem que isso consuma meu espírito, meu amigo Malaquias. Deixai que Jesus mude você e que sobre a orientação de Oxalá possamos levar daqui aqueles que assim o desejarem. - Deixarei que seus amigos levem quantos quiserem, desde que você, maldito, fique! - Isso não está em negociação, Malaquias. - disse Henrique. - Vocês não têm outra opção, soldado de Ogum. Abrirei mão até desse traidor aí, em suas costas, mas ficarei com o velho Ortêncio. - Se é isso que você quer Malaquias, eu aceito. Todos se surpreenderam com minha decisão até o próprio Malaquias. – O quê? - Isso mesmo. Que os mensageiros saiam em segurança, que seus guardas baixem as armas e que todos os que quiserem possam partir e, então, eu irei com você. O silêncio foi ensurdecedor, até que Malaquias disse: - Que assim seja feito. Então, lançou um tipo de laço que envolveu meu corpo e, quando se virou para sair me arrastando, centenas de soldados da legião de Ogum cercaram não apenas a sala, mas, pela energia que se expandia, toda a cidade. Gabriel, da 7ª Legião de Exu, deu um passo à frente e disse: - Malaquias, como aqui já foi dito, esta oportunidade lhe foi oferecida pela Misericórdia Divina e a mesma Misericórdia não poderia deixar qualquer espírito que fosse se sacrificar, por maior que pudesse ser a causa. Ortêncio não voltaria jamais às cidades das trevas para seu sofrimento, mas é apenas para trazer luz ao seu coração que ele está aqui e, portanto, peço que não haja luta e que você faça sua escolha em paz. Malaquias soltou seu chicote e apenas disse isto: - Ainda não acabou. Saiu, esperando que seu exército o acompanhasse, mas nenhum dos seus se movera e o Cavaleiro Negro saiu solitário, carregando consigo apenas o seu ódio. O que aconteceu depois foi algo que eu jamais imaginara que pudesse acontecer no plano espiritual. A cidade começara aos poucos se iluminar, como quando acontece quando sol vence as grandes tempestades. Veículos de várias cidades espirituais faziam o socorro daqueles que queriam ou tinham condições de serem socorridos: eram milhares de espíritos, porém outros milhares ainda ali ficariam ou mesmo partiriam para outros lugares em busca de seu chefe.
Sentamos no portal da cidade João, Henrique, Maria e eu. As lágrimas banhavam nossos rostos, e, então, eu perguntei: - Quem sou, João, e o que faremos agora? – Você, fio, é um fio de Deus em evolução. Logo poderá saber e, se assim quiser, poderá também trazer aos vivos na carne sua experiência como Mago Negro, pois retornaremos a Aruanda para que você se prepare para tal. No mais, ore a Jesus e agradeça a oportunidade. Ficamos, então, sentindo o sol brilhar mais uma vez e vendo as flores brotarem naquele lugar, onde eu pensara que só pudesse nascer a dor. Lembrei-me da frase de um amigo, que conhecera em minha viagem até ali, quando lhe perguntara por que o hospital Bezerra tinha tantas flores, a qual eu transformei em meu lema de vida: “Mais flores na vida, Ortêncio, pois nos túmulos elas nada valem...”