segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Livro 2 Página 1

Eu achei que saber quem eu era seria mais fácil, mas a tarefa de se descobrir é uma da mais difíceis que se pode ter em nossa vida, tanto carnal quanto espiritual. Ainda assim, sentia-me feliz por agora ser uma semente do bem. Por estar ao lado dos meus companheiros e, principalmente, por aprender que o mundo dos mortos não é uma ilusão ou fantasia, como aquelas contadas em livros bonitos. O plano espiritual, como vocês gostam de chamar, é tão real que, com o mínimo de esforço, os da carne poderiam vivê-lo muito antes de morrer, porém, quem está disposto a isso? Qual de nós fará como Pedro que se transformou de simples pescador de peixes em pescador de almas? Sim, Pedro tinha medos, tinha seus problemas e em alguns momentos lhe faltou a fé, mas nunca lhe faltou o amor. Eu, sentado diante dos prédios de Aruanda, pensava em tudo isso. Passar uns dias em casa, depois de tantas peripécias, estava me ajudando muito, diferentemente do que se pensa o espírito é um ser universal, sim, porém precisa de raízes e de um lugar para chamar de casa e repor suas energias e rever amigos. Ubirajara da Sétima de Oxalá se aproximara de mim sem que eu notasse sua presença e sentou-se ao meu lado, ao percebê-lo ali, meu coração cheio de dúvidas e afogado nas mágoas se manifestou, derramando lágrimas sobre meu rosto. O índio vestido de branco e descalço, segurou em minha mão e eu, como um filho assustado que busca abrigo, deitei-me em seu ombro. Por uns instantes, nenhum de nós falou nada, ele sabia que eu precisava esvaziar meu peito e minha mente cheia de dúvidas. Foi o Ubirajara que quebrou o silêncio: – Não será uma caminhada fácil filho, mas Jesus é seu principal conselheiro e não te abandonara nessa hora, sei que se culpa por ter feito parte das hordas do mal, mas filho, qual de nós chegamos aqui com o passado limpo como água cristalina? Qual de nós não tem que lutar todos os dias contra nossas más tendências, ou contra os desejos que se escondem em nossos corações? O lado de cá não deixa as coisas mais fáceis como você imaginava. As cidades espirituais não são cercadas de pessoas felizes o tempo todo, volitando e cantando hinos ao Senhor, como se pensara outrora. Elas foram construídas com muito suor, sofrimento, trabalho, e tudo isso regado de esperança, amor e fé. São esses sentimentos que devem dominar seu espírito para a nova caminhada que se inicia: esperança de que tu és melhor do que se vê; fé no pai maior que te auxilia e não te desampara e amor para consigo mesmo. Perdoar-se é o primeiro passo, saber que você se recupera aos poucos. Aliás, tão somente aquela sua atitude na cidade Nova Geração já teria bastado para que soubesse isso, pois você se entregou para salvar seus companheiros de viagem e centenas de espíritos que ali estavam. O mal exterior, Ortêncio, agora já não faz mais parte de você, porém, a hora derradeira de lutar contra as trevas que se apresentam desta maneira, ou seja, dentro de você, será daqui para a frente, filho amado. Tenha coragem e não se culpe tanto. Eu refletia acerca daquelas palavras do índio amigo e acalmava meu coração. Ele estava certo, o trabalho apenas estava em sua fase inicial, eu ainda descobriria muito sobre mim, coisas que poderiam me levar a um estado de depressão, caso eu não me preparasse psicologicamente.  Assim sendo, Ubirajara me sugeriu que eu buscasse auxílio na Legião de Iemanjá, pois lá se ministravam cursos de autoconhecimento. Eram grupos de apoio, nos quais cada qual buscava o contato com seu mais profundo eu interior, com técnicas similares a dos povos da carne e com outras que demorarão um pouco para ser conhecidas na terra. Assim procedi, levantei-me e caminhei até a tenda de Iemanjá. Sempre que ali entrava, em seu saguão principal, me espantava com aquele ambiente marítimo tão distinto do espaço exterior. Encontrei-me com Iara que me saudou: – Olá mensageiro, o que lhe traz aqui? – disse-me ela sorrindo e me abraçando calorosamente. – Iara, venho me inscrever no grupo de autoconhecimento. Ela sorriu e disse: – Já estava na hora, hein, velho feiticeiro? Eu fiquei vermelho e sorri com ela, Iara me encaminhou a um balcão onde faria minha inscrição. Sim amigos, as coisas aqui têm sua organização, não é só chegar e entrar. Todo o plano espiritual tem uma organização, pois não é a casa da mãe Joana, como costuma nos falar o Felipe. Passamos pela porta e, mais uma vez, eu estava na vila dos pescadores. Desta vez, passamos pela enfermaria, caminhamos para uma cabana e um pouco mais além, sobre as pedras que recebiam o impacto suave do mar, em um lugar menos agitado do que toda a praia, ali já se via menos pessoas e todas com pranchetas nas mãos, em esteiras espalhadas entre a areia e as pedras, pessoas sentadas ou deitadas, de olhos fechados, meditando, ou descansando sobre o sol e embaladas pela música que vinha das ondas do mar. O lugar exalava tranquilidade e paz, subimos uma escada natural feita de pedras e que findava diante de uma cabana azul com o teto de palha, onde havia também, ao lado da porta, um barco repleto de flores lindas e contendo uma imagem da deusa do mar de braços abertos. Fomos recebidos com um largo sorriso, que estampava o rosto de uma mulher negra, vestida de azul, e que aparentava ser muito jovem, tendo os cabelos encaracolados e soltos, castanhos, e que combinavam com seus olhos cor de mel. – Olá Mariana, como vai? Que Maria os abençoe.  – disse-nos ela, enquanto nos abraçava. – Eu vou bem Iara. – O que lhe traz aqui, minha irmã? – Este é Ortêncio, ele irá se inscrever no curso das profundezas. Mariana me olhou como se me analisasse, deu-me um sorriso lindo e disse, quase em tom enigmático: – Tem certeza disso, meu amigo?